O maluquinho da Ericeira
Por Alice Vieira
Todas as terras têm um maluquinho de estimação.
Nós aqui na Ericeira também tínhamos
Alto, muito magro, sempre vestido de preto, passava o dia todo de pé nas ruas, ora em frente de casas, ora em frente de lojas, ora de cafés, onde quer que fosse
Nunca se mexia, estava sempre de mãos erguidas ao céu, e murmurava coisas incompreensíveis, num fio de voz.
Tinha um pequeno saco ao seu lado mas nunca pedia nada, mas muitos de nós deixávamos junto dele comida, fruta, água. Ele agradecia com um leve aceno de cabeça — e continuava na mesma.
Ficámos a saber que ele tinha tido uma grande paixão mas a rapariga tinha fugido — e ele tinha ido pelo mundo fora à procura dela, acreditando que ela um dia voltaria para ele. Quem é que não gosta de uma história destas?
Por tudo isso, nós todos gostávamos muito dele. E um dia ficámos muito indignados porque, num telejornal apareceu uma notícia a dizer que na Ericeira havia um predador sexual, sempre diante de escolas para depois atacar as crianças. Claro que a notícia era toda na base do “há quem diga”, “ouvimos dizer” — mas ninguém aparecia a dar a cara. Ligámos para a televisão a dizer que era tudo mentira e a contar o que realmente se passava. Claro que não houve desmentido nenhum. Mas, pelo menos, não voltaram ao assunto.
À noite dormia num banco, e muito cedo lavava a roupa no mar — e voltava a ficar de pé, de mãos erguidas ao céu, sem se mexer. Nunca o vimos sujo. Nem zangado.
Um dia eu e algumas amigas minhas concordámos que isto não podia continuar assim, aquilo não era vida para ninguém, alguém tinha de tomar conta dele
Decidimos então contactar a sua embaixada. Contámos-lhes tudo o que estava a acontecer e eles responderam que iam ver o que se passava e que assim que pudessem nos telefonavam.
E assim foi. Umas semanas depois ligaram-nos a dizer que estava tudo resolvido, já tinham arranjado transporte e vinham cá buscá-lo para ele ser enviado para o seu pais, as despesas todas pagas pela embaixada.
Como nós ficámos contentes! E no dia em que o vieram buscar fomos todas dizer-lhe adeus e agradecer aos senhores.
Se a história tivesse acabado aqui, era uma linda história
e tinha acabado muito bem.
O pior é que não acabou. E deve estar tudo a correr mesmo muito mal… Mas nós não podíamos adivinhar.
Não podíamos adivinhar o que, dentro de meses, se ia passar na Ucrânia, donde ele era natural e para onde o enviámos.
Não podíamos adivinhar—mas estamos cheias de remorsos.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira